Runner - Domingo

Domingo


Secos e Molhados – Sangue Latino

Antônio levantou-se da cadeira que permanecia com grande freqüência em frente ao computador de gabinete branco que possuía. Era modesto, porém eficiente para suas necessidades. Internet, jogos não muito exigentes, bate-papo, pesquisas aleatórias...tudo aquilo lhe era fornecido pelo ser que havia passado mais tempo no mundo desfrutando de sua companhia. Imaginar que Antônio é um homem de difícil convivência e solitário devido a esta informação seria ingênuo: aquele jovem de olhar freqüentemente perdido em algo que ninguém além dele sabia era tão complexo quanto qualquer um de seus vizinhos de porta ou cidade. Antônio não era um personagem em suas representações geralmente simples. Antônio era dolorosa e perigosamente humano.

Ele adorava isso.

Na verdade, haviam momentos em que Antônio queria ser algo que não ele mesmo. Queria ser Máquina, queria ser Deus, queria ser Clarisse, sua coelha de estimação. Ainda assim, o sentimento era passageiro. Antônio tinha ciência das vantagens que a condição humana lhe provinha. Sorria quando entendia a piada, resmungava quando perdia a hora, chorava quando perdia o parente, comemorava quando vencia no videogame

Tendo levantado-se, foi ao banheiro de seu apartamento para tomar o banho que acreditava que iria afastar o cansaço e aliviar a dor muscular. Havia sido uma longa noite e ele acabara de escrever um texto no qual, pasmem, escrevia basicamente para si mesmo. Não que todos não o fizessem em maior ou em menor grau quando escreviam, mas aquele texto parecia sem propósito já que sua escrita havia sido recomendada por sua terapeuta. Era uma mulher bela, apesar de casada. Tinha uma filha e, segundo o instinto de Antônio, ainda estava inteira o suficiente para ser novamente inseminada.

Não que ele gostasse de ver sua própria terapeuta como um objeto sexual: tal coisa seria até contraditória já que Antônio era defensor da idéia de que não somos absolutos em nada e, portanto, parciais em tudo. Sônia era gostosa demais para ser um ser humano e humana demais para ser apenas um corpo.

A água causava ardor no corpo cansado de Antônio. Até agora, ele não entendia ao certo o que o movia em sua empreitada, mas ele continuava. Mesmo sem razão aparente, tudo aquilo fazia muito sentido. Enxugando-se, retornou ao quarto de seu apartamento para então deitar-se sem ao menos dar-se ao trabalho de vestir-se.

Morar sozinho dava-lhe a possibilidade de andar nu pela casa com muito mais freqüência do que outras pessoas o fariam. Para ele, não fazia muita diferença pois não possuía problemas com a sua nudez e estava acostumado ao uso de roupas apertadas. Eram necessárias a seu trabalho, afinal.O controle remoto de seu aparelho de som encontrava-se no criado-mudo próximo a cabeceira de sua cama. Pegando-o sem olhar, Antônio apontou para o som, ligando-o e ouvindo a melodia de uma música há muito fora de moda, porém de gosto popular. Os Secos e Molhados tocavam Sangue Latino e ele, que nunca havia prestado atenção na letra da música, assim o fez. O que ouviu o relembrou que o preconceito e a preguiça podem destruir a nossa capacidade de aprender e, tendo sentido que aquelas palavras faziam sentido em seu mundo, sorriu. Esta foi a penúltima coisa que fez antes de dormir, pois eram 5 da manhã e nem parecia que mal havia chegado em casa.

Mas antes de perder-se em meio ao nada da maioria de suas noites de sono, ele pensou, ao ouvir:

“Jurei mentiras e sigo sozinho,
Assumo os pecados
Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos
Meu sangue latino...
Um grito, um desabafo
E o que me importa é não estar vencido.”

“Eu não estou vencido”, pensou e dormiu.